sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Fiama, «Um Canto Mudo» [+ DOC.o]

 - [ao ver, pela 2.a vez, na «RTP-Play», o Doc.o [«A secreta harmonia do mundo«]**, ontem exibido, como não tirar «Obra Breve» da estante? ;  - escolha «casual», entre leituras «casuais»]:

UM CANTO MUDO

Guardam-me, de dia, um só melro,
de noite, um só grilo. O melro
suspende nos ramos o sulco do seu canto,
um assobio contínuo e descontínuo
que de repente cai, se me ouve os passos
roçarem entre as pedras e as plantas,
no meu chão. O grilo, esse,
vizinho sazonal da minha porta,
parente que vive na soleira
num torrão de terra seco e verde,
quando range numa frincha o vento
ou se balançam as sardinheiras da entrada,
corta o seu fio de sons, o movimento eufórico,
e avisa-me da vida ou morte, pelo silêncio.

Ambos desfrutam a Terra ao pé de mim,
festivos se estou quieta,
ou se o microcosmos comigo se conforma.
Se eu ando incerta ou se o condutor das almas
me força o meu cubículo
no centro da clareira, o melro ou o grilo
chamam-me calando-se.
Porque cantam sem pensarem no seu canto
e conhecem dos meus nomes o mais eterno.

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra breve - poesia reunida, 2006, p. 630; [poema de Cenas Vivas, 2000?]
[Fiama, por Jorge F. da Silveira, «Real Gabinete», Out., 2022]
** - já não, desde 26;