quinta-feira, 21 de março de 2024

«Cura» [«a função principal da poesia«] ; (Parrado, Luís Filipe)

CURA 

A cada dia que passa torna-se cada vez mais evidente
que a função principal da poesia
é a de criar condições
para que nos possamos perder em definitivo
no coração das florestas.
Trata-se de um processo terapêutico.
No entanto, convém ter consciência de que
qualquer perdição, por discreta que seja,
só se revelará objectivamente eficaz
se os poemas circularem sem indicação de origem
e autoria, anonimamente, 
como medicamentos genéricos 
ou de marca branca. Se tal acontecer
(perdidos, clarividentes), os leitores não precisarão
de decorar nomes de poetas, apenas versos; ou poemas inteiros.

Luís Filipe Parrado, Museu da angústia natural, 2023, p. 23

segunda-feira, 18 de março de 2024

«Renascimento», Nuno Júdice

 RENASCIMENTO

acreditar no
tempo o erro mais terrível

GASTÃO CRUZ, «Fogo, 41»

O vento faz voar as folhas
que caíram da árvore durante
a noite. Dançam ao sol, como se
a morte as não incomodasse;
algumas, encostam-se ao sopé
da porta, pedindo para entrar;
e vejo-as no chão de madeira,
umas contra as outras, reconhecendo
o espaço que, outrora, espreitavam
quando as janelas se abriam e os ramos
se encostavam ao vidro. Mas 
estas folhas sabem que outras virão,
na primavera que se aproxima, tomar
o seu lugar; e por isso olham-me,
pedindo que as atire para a terra,
junto do tronco, onde a chuva as irá 
transformar em alimento para
as raízes, no eterno círculo
da vida natural.

Nuno Júdice, Uma colheita de silêncios, 2023, p. 24

- vários artigos no «Publico», como ESTE; ESTE; ESTE; ESTE; a 23, no «DN», artigo de A. C. Cortez;
- a 29, no «Postal do Dia», por Luís Osório

terça-feira, 12 de março de 2024

Cruz-Filipe

Fotografia de Nuno Ferreira Santos
- recorda o Eng.º, cliente do «Aux  A. de Paris» - D. de Bragança, 7 - aí por 83-84...; do Público-Ìpsilon

Melómano, Cruz-Filipe é também um exímio cinéfilo e fotógrafo, na medida em que as suas tarefas de gestor e engenheiro lhe permitiam sê-lo. Conta-nos das viagens que fazia por causa da sua profissão, e mesmo de uma, a Washington, integrado numa comitiva que ia negociar um empréstimo ao Banco Mundial [...]

terça-feira, 5 de março de 2024

«O Silêncio em Volta», M. T. Horta (e a avó Camila) OU Ler antes do «Plano Nacional...»

Ameaça

Por vezes há
um incerto silêncio
à minha volta…
 
Que me quer ferir
e rasga
 
Me ameaça
e desgraça            
Me deseja
e me desata

- poema inédito, na Capa do jornal, daquela jornalista que, aos 86, é «Directora por Um Dia»; Entrevista lida, de manhã, no Metro

RECORTE(s):
[...] Havia a influência da sua avó...
Sim. As mulheres da minha vida eram muito mais ousadas do que os homens. Eu não sei como seria se não fosse a minha avó. Sentávamo-nos as duas e o meu pai tomava o pequeno-almoço e lia o jornal. O jornal só vinha para o meu pai, o Diário de Notícias, e nós não podíamos ter nem uma coisinha para ler. [...]
Como se chamava?
Camila, a minha avó Camila, a mãe do meu pai. Vivia connosco. Foi a primeira mulher a ir para o liceu em Portugal, e isso fazia tanta diferença, porque as meninas não iam para o liceu.   [...]
Aprendeu a ler em casa porquê?
Tinha uma grande curiosidade e sempre achei que ia ser muito bonito ler. No escritório do meu pai, havia estantes pelas paredes. Eu tinha sete ou oito anos e não podia pegar num livro. Quando o meu pai ia com a minha mãe a casa dos amigos ou ao cinema, a minha avó ia direitinha ao escritório do meu pai, sentava-se e dizia-me: “Escolhe um livro.” Era uma coisa espantosa. Hoje não era aquilo que sou se não fosse a minha avó.
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