domingo, 6 de janeiro de 2019

plantas (o extraordinário mundo introspectivo das) - Rosa Oliveira

[relido na Pausa, na Zmab...; abre a segunda Estação de 1819..]

o extraordinário mundo introspectivo das plantas

morrem mudamente
estão doentes e não gritam
zangam-se umas com as outras
e connosco
e não esbracejam
e renascem em pouco tempo
se lhes dermos um pouco da nossa pequena
mortal terra mortal

cobrem os crimes humanos
esquecidos na floresta do nosso esquecimento
precisam de água como nós
em certas estações do ano e em certos climas
embriagam-se afectivamente e descaem
nos nossos ombros
acompanham a música e o silêncio
caem    soçobram    levantam-se
tudo isto sem saírem do mesmo sítio

as plantas podem viver dentro das nossas unhas
detrás dos nossos olhos
levam tiros frágeis
disparados pelos nossos
neuróticos impulsos
compassados como a valsa
de mil tempos
as plantas respiram para dentro de nós
usam itálicos como confetis
inventam inimigos
prosseguem

sou a pessoa que contempla as plantas
e não gosta de animais
os tais animais muito, muito lentos que são as plantas

Rosa Oliveira, Colóquio-Letras, n.º 198, Maio/Agosto 2018, p. 180

[versão em errático, 2020 (Agosto), pp. 44, 45]:


o extraordinário mundo introspectivo das plantas

morrem mudamente
estão doentes 
não gritam
zangam-se umas com as outras
e connosco
e não esbracejam
e renascem 
se lhes dermos um pouco da nossa pequena
mortal terra mortal

cobrem os crimes humanos
esquecidos na floresta do nosso esquecimento
em certas estações do ano e em certos climas
embriagam-se afectivamente e descaem
nos nossos ombros
acompanham a música e o silêncio
caem    soçobram    levantam-se
sem saírem do mesmo sítio

as plantas crescem debaixo das unhas
detrás dos olhos
levam tiros frágeis
disparados pelos nossos
neuróticos impulsos
compassados como a valsa
de mil tempos

as plantas respiram para dentro de nós
usam itálicos como confetti
inventam inimigos
prosseguem

sou a pessoa que contempla as plantas
e não gosta de animais

os animais muito, muito lentos 
que são as plantas

Rosa Oliveira, errático, 2020 (Agosto), pp. 44-45