domingo, 15 de outubro de 2017

«Je est un autre» - Manuel Alegre

ALGUÉM FALA POR MIM

Alguém se debruça sobre o que escrevo
alguém se calhar escreve por mim.
Não são teorias da literatura. Nem bruxarias.
Sequer aquilo a que não gostam que se chame
inspiração. É uma coisa física
ultimamente vem de preto
uma espécie de sombra.
Talvez a minha cabeça 
esteja cheia de duplos. Um outro é eu
etc. e tal. Mas isso é literatura.
Esse não sei quê que se debruça e roça
pode ser talvez uma alucinação.
Quem é? De onde vem?
Aposto que se lhe perguntasse
metia-se à socapa no texto
e escreveria: António.
É o que sem dar por isso
ele (ou eu) está (estou) a fazer. António:
repete. António: repito.
E a mão escreve esse nome que está e não está
escrito.


Manuel Alegre, Auto de António, Assírio & Alvim, 2017 (outubro), p. 24


[«Fala de Âlcantara e depois», da p. 12, na CASA do autor]
[artigo de J. J. Letria, de 15 - 10, no DN