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[...] E a mamã morreu mesmo, sem conseguir o feito de entrar docilmente na noite serena e odiando a luz que começava a morrer. Como a entendo! Que difícil será desistir, deixar para trás, libertar o peso que queremos manter porque esteve connosco e nos matou e amparou no mesmo minuto, porque tudo é o que é e o seu contrário. Como é que se abdica da vida?!
Era para lhe ter pedido uns conselhos na véspera à noite, mas já era tarde. A conversa fica adiada para um sonho futuro. Não lhe dei o beijo de boas noites. Há um dia em que todas as noites acabam.
Tenho-a sepultada em campa rasa no cemitério de Vale de Flores, Feijó, com uma tabuleta de metal negro onde pintaram um 880 a tinta branca. Talhão B, campa 880. A mamã deixou de ser um nome associado a uma data de nascimento, filha de fulano e sicrano, nascida na freguesia tal, de determinado concelho do país. Pesa-me, porque a mamã nunca foi uma combinação de números. A mamã atravessou vidas e oceanos. A mamã rasgou o véu da existência e inscreveu-se nela, para sempre. Um número?!
Preciso de comprar uma lápide para a mamã, para que ela veja, de onde está, que me aguento sozinha, apesar da sua ausência, que pode orgulhar-se de mim pelos séculos dos séculos. Mas o orgulho tem de esperar. Os cortes no salário, os impostos e a sobretaxa do IRS mal me deixam respirar. Dá para viver, não para despesas adicionais. A prima Fá emprestou-me o valor do funeral. Se a mamá soubesse, meu Deus, se ela soubesse! Ainda bem que se foi.
A Gorda, Isabela Figueiredo, Caminho, 2016 (outubro), p. 209, 10
Sete anos depois de se estrear com (...), publica, aos 53 anos, o seu primeiro romance - NUNO FERREIRA SANTOS |
-- [«Panorama», de Rui Catalão, no mesmo «Endereço» - com fotos... AQUI]
- Crónica, em 24 - 10 - 2020
-Entrevista, em 2021, pelo lançamento da Tradução, em francês, de Caderno de MEMÓRIAS COLONIAIS - + Excerto lido
- em Novembro de 2022, pelo lançamento de novo livro, entrevista ao Ípsilon
- em 4 de Julho de 2024, pelo prémio atribuído à tradução francesa de «A Gorda», na Antena 1, «Uma noite em forma de assim»;