[…] O dia de trabalho começava na vasta sala em que as luzes nunca se apagavam apesar das grandes janelas de vidro que davam sobre milhares e milhares doutras janelas, pela cidade afora. Despi o casaco e sentei-me no meu lugar, ao teclado. O meu jovial companheiro de secretária, Antero, o mais sensato organizador de recortes do mundo, veio lá de trás, de junto de um grupo que se instalava, e desmoronou-se, pesado, na cadeira, que exalou um queixume soprado e deslizou um pouco sobre o rodado de titânio.
─ Bem-disposto? Sabe o que a Marcela anda a dizer de si?
─ Poupe-me, por favor ─ protestei.
─ Que não trouxe o seu chochman. E que, apesar disso, embolsou a schackmine.
Tive um baque.
─ Estou-me borrifando ─ segredou-me ele. Deu-me uma rápida palmada no ombro e começou a trabalhar nos seus papéis. Não me dirigiu a palavra durante mais de uma hora, mas reparei que, disfarçadamente, me rasava com breves olhares de esguelha.
Naqueles tempos ainda vigoravam algumas leis. Naquela casa cumpria-se, tradicionalmente, teimosamente, porque esse direito tinha sido universalmente desregulamentado, o intervalo para almoço. Eu estava à espera, com ansiedade, que o momento chegasse. Durante a pausa, fugiria de todos, enfiar-me-ia nos lavabos, ou passearia nos corredores, de modo a que não reparassem em mim. Nunca pensei que uma coisa assim pudesse acontecer-me: sentir uma schackmine ilegítima no bolso, e estar desmunido do meu chochman, quando ele não faltava a mais ninguém.
Não sabia porquê. O facto é que não o tinha! A pérfida Marcela notou logo. Agora toda a gente já sabia. O recepcionista, antes. E tudo começara com ele a observar-me de modo diferente. Bem que podia desde logo ter-me avisado, em vez de graduar o sorriso e me estender a schackmine… […]